No prefácio da edição de 2010 de “As veias abertas da América Latina” (L&PM Pocket), o autor uruguaio Eduardo Galeano “lamenta que o livro não tenha perdido a atualidade”. Publicado pela primeira vez no início dos anos 1970, a obra se tornou um clássico sobre a miséria causada pela colonização no continente latino-americano e só chegaria ao Brasil nove anos depois, pois vivia-se aqui - como nos vizinhos sul-americanos - a censura das ditaduras militares.
Somente a partir da década seguinte nosso país começaria a transição “lenta e gradual” para a democracia equilibrista que conhecemos hoje. Mas, já naquele momento, o cinema nacional mostrou seu peso com o lançamento de “Pra Frente, Brasil” (1982). O filme, protagonizado por Reginaldo Faria no papel de um trabalhador comum, que é preso após ser “confundido” com um militante de esquerda, exibe cenas explícitas de torturas, que ajudaram a dar visibilidade às denúncias e mais tarde culminaram no histórico documento “Brasil: Nunca mais”.
Desde então, apesar de parecer um tema recorrente, as poucas obras cinematográficas sobre o período pareciam ter saturado as possibilidades criativas. Na primeira década dos anos 2000, produções como "Zuzu Angel" (2006) e "Batismo de Sangue" (2007) foram lançadas no contexto das primeiras discussões sobre o livro-relatório "Direito à Memória e à Verdade" e da Comissão da Verdade, prevista no Programa Nacional de Direitos Humanos III. Tratado como “revanchismo” pelos setores golpistas da sociedade brasileira, o programa pretendia investigar e reconhecer os atos cometidos pelo Estado contra vítimas da Ditadura. Até aquele momento, denunciar a barbárie militar em cenas com paus de arara e gritos parecia tão óbvio quanto necessário. Afinal, era preciso dar uma cara àqueles que sequestraram, além de pessoas, a própria memória nacional.
No entanto, sobretudo depois de "“Tropa de Elite” (2007) - que apesar de não ser exatamente sobre a ditadura, escancara os horrores e heranças do militarismo - a violência nas telas parece ter passado do choque ao gozo. O público que antes assistia àquilo com perturbação, agora parecia vibrar e torcer pela bestialidade como solução para o impasse que nunca foi verdadeiramente nomeado. Por isso, vale destacar as escolhas audiovisuais em "AINDA ESTOU AQUI" (2024) nas cenas que buscam retratar o Regime Militar. Não mostrar pessoas sendo diretamente torturadas expressa delicadeza, não apenas com a memória de Rubens Paiva e seus familiares, mas também com quem assiste a trama mediada pelas lentes do diretor Walter Salles.
É comum que, em filmes de terror, os espectadores queiram ver o que nunca foi visto. Assim, num filme que tem como objetivo narrar o período de terror da nossa história, a opção por aquilo que ficou escondido nos porões parece um caminho natural. Mas "Ainda estou aqui" não é um filme de terror, é um filme sobre angústia. É a angústia da ausência - do marido/pai sequestrado, dos companheiros exilados, dos filhos que pouco a pouco saem de casa e, depois, da doença do Alzheimer - que norteia todo o roteiro. A tortura maior não é escancarada na tela, mas construída a partir dos afetos familiares dilacerados pela covardia ditatorial. É o ressentimento contido naquilo que já foi cantado: “tudo o que você podia ser” (se não fosse tudo o que fizeram com você).
O título do filme também indica uma continuidade: ainda existe uma vida, um caminho a percorrer, é preciso seguir. Apesar da esperança que todos buscamos na sequência, mesmo conhecendo o triste fim do ex-deputado, o roteiro derrapa. Na cena em que o soldado acompanha Eunice Paiva para libertá-la depois de dias seguidos de interrogatório clandestino, o militar de baixa patente diz não concordar com aqueles atos (que atos: as torturas realizadas naquele local ou a liberação da Eunice?). Nesta ambiguidade, o filme subscreve a maior justificativa da anistia “ampla, geral e irrestrita” que contemplou até quem cometeu crimes imprescritíveis de lesa-humanidade.
Em boa hora
Contudo, "Ainda estou aqui" comove e não só pela atuação magnífica de Fernanda Torres que, dentro e fora da tela, tem trabalhado para dar voz à Eunices, Marias e Clarices. É especialmente importante o timing (fortuito, é verdade) que sucedeu seu lançamento: a discussão sobre os atos golpistas do 08 de janeiro de 2023, agravadas pelas denúncias recentes de planos para reeditar um golpe militar, inclusive com o assassinato de um ministro do Supremo Tribunal Federal e da chapa presidencial eleita, formada por Lula e Alckmin.
Veias seguem abertas
Ao narrar o genocídio da população indígena, séculos de povos negros escravizados, a corrupção da elite continental e os expedientes do Imperialismo para manter e maximizar seus lucros, baseados na exploração dos nossos recursos e da nossa gente em "As veias abertas da América Latina” , Galeano aponta as ditaduras do Sul global. Desta forma, ele acentua uma história pouco contada, a dos vencidos. No mesmo prefácio citado no início desta humilde resenha, o escritor afirma:
“A história não quer se repetir - o amanhã não quer ser outro nome do hoje - mas a obrigamos a se converter em destino fatal quando nos negamos a aprender lições que ela, senhora de muita paciência, nos ensina dia após dia.”
Esta também é a história contada em "Ainda estou aqui": a história de quem não acertou as contas com o próprio passado e por isso precisa continuamente afirmar a sua presença para não ser esquecida.
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